Texto: Sara Figueiredo Costa | Foto: Kuentro

O último livro de Tommy Musturi não se anuncia como best of ou antologia, mantendo-se na capa a expectativa de um inédito que acaba por revelar-se enganador. Apesar disso, Beating constitui uma porta de entrada privilegiada para a obra do autor finlandês: trabalhos previamente destinados a fanzines, exposições e várias publicações dispersas surgem reunidos num tomo que dá a ler uma obra plural, produzida entre 2003 e 2013, agora com a acessibilidade facilitada por uma edição única. Neste volume, de grande formato, privilegia-se o efeito de montra que uma colecção com estas características pode constituir, mas a leitura das obras individuais de Tommy Musturi conduz-nos por caminhos mais estruturados em termos de narrativa e semântica. A série The Books of Hope, composta por cinco livros (alguns deles já com edição em inglês e francês) e recentemente concluída, explora o tema da memória e o modo como a sua construção se assume como definidora de uma vida, mesmo quando essa vida é partilhada e a memória do outro nem sempre corresponde à nossa. A composição de pranchas e vinhetas com uma arrumação mais rígida do que é formalmente habitual na obra do autor é, talvez, o elemento mais visível de um processo que, ao longo de oito anos, centrou Musturi na experimentação à volta do storyboard e da arrumação narrativa, sem demasiada liberdade para estender as fronteiras de cada vinheta para um infinito potencial que atropelasse, como noutros trabalhos do autor, a fronteira da prancha.

Se é possível reconhecer em The Books of Hope uma certa inovação na linguagem de Musturi, não enquanto escala de valoração qualitativa, mas antes como deriva na procura de outros modos de trabalhar, a presença de uma ponderada utilização da cor continua a ser linha de força essencial e dominante na sua obra. O trabalho do autor com a cor é emblemático, não porque as suas pranchas e imagens sejam mais ou menos coloridas do que as de outros, mas antes pelo modo como infunde significação às escolhas cromáticas. Em Caminhando Com Samuel, editado em Portugal pela Mmmnnrrrg, a utilização da cor revela-se essencial na própria estruturação narrativa, já que é a partir dos contrastes, da diferenciação de tons e da gradação que os diferentes episódios e momentos da quase cosmogonia que compõe o referido livro se constroem. De um certo modo, quer este livro, quer a personagem de Samuel podem ler-se como nucleares na obra de Tommy Musturi, na medida em que o modo de Samuel olhar o mundo, sem que a História seja o elemento organizador da narrativa, prevê o acaso como possibilidade maior para os acontecimentos e a sua explicação, criando um universo onde não são as respostas aquilo que se procura, mas antes os deslumbramentos.