Por Pedro Cleto.

Autor atento, inquieto e interventivo, Etienne Davodeau, (geralmente) longe dos focos mediáticos, desenvolveu ao longo de duas décadas uma das mais interessantes bibliografias em banda desenhada (francófona e não só...) e é, por isso, em minha opinião, uma das mais acertadas apostas do Festival de Banda Desenhada de Beja.

Tive a felicidade de o descobrir, logo em 1992, no seu álbum de estreia, Les amis de Saltiel: L'homme qui n'aimait pas les arbres, integrado na (então nova) colecção Génération Dargaud;

Davodeau, então com 26 anos – nasceu a 19 de Outubro de 1965, em França – aproveitava a temática de uma vingança encomendada para lançar um olhar inquisidor sobre o ser humano, as suas motivações, obsessões e dúvidas.

Aquele primeiro contacto marcou-me e fui acompanhando o seu percurso, no qual se foi desenvolvendo como um sólido cronista do quotidiano, atento e inquieto, com o seu desenho nervoso e rápido ao serviço da(s) história(s) que ia contando - ou de que apenas fazia eco?

Mais tarde, em 1998, tive o privilégio de o conhecer, no Festival de Angoulême – onde, curiosamente, o encontrei completamente só, apesar da sessão de autógrafos em curso e de ter sido nomeado para o Alph-Art do melhor argumento por Quelques jours avec un menteur (que eu viria a traduzir como Alguns dias com um mentiroso, na edição portuguesa Mundo Fantasma/Salão de BD do Porto, em 1999).

Foi uma oportunidade única para uma conversa enriquecedora e que me ajudou a conhecer melhor o autor deste relato semi-autobiográfico, sobre a entrada (tardia, aos 30 anos...) na idade adulta e a necessidade de abandonar a rebeldia, a inquietação e a capacidade de sonhar mais identificadas com a juventude.

Depois, fomo-nos cruzando irregularmente, nas férias que gozava em Portugal, no Salão do Porto, onde foi convidado em 1999, ou, de novo, em Angoulême.

Mais do que isso, continuei a acompanhar uma carreira coerente e assertiva, raramente sob a luz dos holofotes apesar dos prémios que (justamente) foi coleccionando, em que a banda desenhada era o meio que empregava "para marcar a diferença" , mesmo duvidando que os seus livros "possam mudar o que quer que seja"1.

Apesar disso - conscientemente, sabendo que faz "a banda desenhada de que gosta" mas que não lhe vai trazer "glória nem fortuna" - continuou a criar as suas narrativas desenhadas, cultivando o "realismo contemporâneo em que quer trabalhar", fossem elas crónica social, reportagem ou documentário, pois Davodeau demonstrou - continua a demonstrar - que a banda desenhada é um meio extremamente rico e eficaz para qualquer género de relato.

E mesmo quando a temática parece apontar outros rumos - uma vingança (em L'Homme qui n'aimait pas les arbres), um traficante que quer deixar o bando a que pertence (Le constat), um assassinato contratado (Le réflexe de survie), há sempre um forte fundo social, uma ancoragem incontornável na realidade que permite várias leituras, tornando as obras muito mais estimulantes e desafiadoras. Por isso, naqueles ou noutros títulos, encontramos pistas, sinais, referências ao quotidiano e ao presente, como o encerramento de uma velha gare, o confronto entre extremismos políticos, a omnipresente crise (que já era tema há década e meia...), o fantasma do desemprego, o (fanatismo em torno do) futebol...

Temas que lhe permitiram a criação (e a nós a descoberta) de personagens de uma imensa riqueza e originalidade, credíveis, simples, solidários ou sacanas, sociáveis ou solitários, que (re)conhemos naqueles com quem privamos. Que se destacam igualmente pela forma exemplar que Davodeau trabalha os diálogos, de uma naturalidade espantosa.

São também eles - apetece-me escrever principalmente eles - que dão corpo a uma série de obras notáveis, onde seria impossível não incluir igualmente Rural (2001), uma reportagem sobre as ilegalidades e os atropelos cometidos na construção de uma auto-estrada que cortou a meio uma quinta de agricultura biológica exemplar, para servir interesses políticos e financeiros; Ceux qui t'aiment (2002) uma reflexão amarga sobre o mundo do futebol e os muitos interesses que se servem dele e sobre a rápida ascensão e queda dos seus ídolos; Chute de Vélo (2004) uma crónica familiar desencantada; Lule femme nue (2008), em que a protagonista, entrada nos 40, se questiona e questiona a vida familiar que leva; Les Ignorants (2011), sobre a troca de experiências durante um ano entre o próprio Davodeau, enquanto autor de BD, e Richard Leroy, um vinhateiro; ou até o recente Le chien qui louche (2013), uma comédia leve mas mordaz sobre o mundo da arte e aqueles que a definem enquanto tal. No conjunto, estes apontamentos quotidianos desenhados, quase sempre de final em aberto (como a vida...), constituem um reflexo lúcido e, por isso, inquietante, deste mundo tão tranquilo em que vivemos.

(1) Todas as citações apresentadas foram retiradas de Criar BD implica uma certa solidão, uma entrevista que fiz a Etienne Davodeau, publicada no Jornal de Notícias de 23 de Agosto de 1999.

(2) Aqueles que te amam, na edição portuguesa da MaisBD (2002).
Nota: Pedro Cleto tem uma série de críticas a trabalhos de Davodeau, publicadas no seu blog, incluindo aquele que deverá ser o seu trabalho mais conhecido em Portugal: Alguns Dias com um Mentiroso.