Texto de André Azevedo para o Splaft! Nº10 | Fotografia: Kuentro

O trabalho gráfico de Ana Biscaia para A Cadeira Que Queria Ser Sofá (Lápis de Memória, 2012), livro com textos do brasileiro Clóvis Levi, professor e crítico de teatro infantil, foi premiado em 2013 na 17ª edição do Prémio Nacional de Ilustração porque, segundo o júri, a autora conseguiu transgredir nos "alinhamentos habitualmente impostos pela composição e paginação gráfica c tipográfica". É por isso, mas não só, justa merecedora de uma exposição individual neste X Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja.

Ana Biscaia (Figueira da Foz, 1978) formou-se em Design de Comunicação pela Universidade de Aveiro e fez um mestrado em Ilustração na Konstfack University College of Arts, Crafts and Design, em Estocolmo, e é precisamente este percurso que dotou a autora da atitude analítica e critica que se espera do acto de comunicar graficamente e com um determinado objectivo, neste caso adaptar visualmente três textos que perpetuam o legado dos clássicos contos morais infantis (Charles Perrault, Jacob e Wilhelm Grimm, Aesop, Lewis Carroll ou mesmo James Janeway com o seu A tokenfor children: being an exact account ofthe conversión, holy and exemplary lives andjoyful deaths, of several young children), e isto com um objectivo bem específico: através da personificação de objectos ou seres irracionais, o Sol, um bombom, uma cadeira, Clóvis Levi tenta desmistificar a estranheza e a incredulidade que o carácter permanente da morte provoca nas crianças.

Um Espanto Feliz, o conto preferido de Ana Biscaia pela analogia com a situação actual no nosso país, "O Sol, vendo um reino sem crianças e sem jovens, decidiu nunca mais aparecer ali. Então, caiu a noite eterna.", e isto porque o rei Peloponeso, amargurado pela morte de Carolina, a sua única filha, decide Proibir de forma irracional, acto este ainda bem presente na sociedade contemporânea e também sempre carregado de morte, de término de algo por castigo ou por medo. Em O Piano de Calda, um jovem bombom aguarda ansiosamente por ser escolhido, sair da caixa e conhecer o mundo, mas o destino final "Não é passeio, é morte" diz-lhe "um chocolate bem amargo". No terceiro conto, o mais alargado e o que dá nome ao livro, A cadeira que queria ser sofá, ficamos a conhecer as angústias de uma cadeira de madeira antiga, que sonha em ser um confortável e colorido sofá, porque agora, tal como a sua dona original, a bisavó Clotilde, já é considerada velha, feia e inútil.

Três contos cujas palavras são apropriadas graficamente por Ana Biscaia, co-autora de pleno direito nesta obra, integrando-as em pranchas de forte carga plástica, criadas através da utilização de grafite e diversas tintas, pincéis, colagens, lápis de cor, de cera e de óleo e recorrendo a técnicas de pintura, de stensil e graffiti, algures entre Basquiat e Cy Twombly, e com as páginas a funcionarem como um todo, aproximando-as mais da banda desenhada "alternativa", de um scrapbook ou de um livro de artista, do que do tradicional livro para crianças.

Temos agora aqui a oportunidade de apreciar in loco todo este original e desafiante projecto de Ana Biscaia.