Memórias da Banda Desenhada Nº171 
O Louletano, 11 de Maio de 2009 | Por Jorge Magalhães


Ao volante de um velho automóvel, Cuto percorre pa­chorrentamente as pradarias desérticas do Oeste americano e encontra, numa volta do caminho, dois peles-vermelhas que parecem tão reais como os do tempo da colonização. Cuto arregala os olhos de espanto: estará a sonhar ou aqueles índios pertencerão a algum circo ambulante?

A partir deste prólogo, Blasco constrói o enredo com mão de mestre, servindo-se de um artifício para fechar o ciclo tem­poral e logicamente. É claro que Cuto nunca viveu aventuras no passado — mesmo quando "desen­terra" ci­vilizações desapa­recidas, como em "O Mundo Perdido" —, mas nin­guém dá por isso antes dele voltar ao deserto e sucum­bir, deli­rando, sob as flechas vingativas de "Falcão Veloz", o novo chefe dos Sioux.

Em seguida, surge uma imagem insólita: o espírito de Cuto (vítima inocente do genocídio cometido contra os índios) subindo para as alturas celestiais, ao encontro do seu velho amigo Slim. Quando ele "ressuscita", ao som da buzina do seu calhambeque, como se ouvisse as próprias trombetas do Juízo Final, o leitor sente-se joguete de uma dupla ilusão. É como se Cuto, vencido pela fatalidade, pelo destino, depois de nos empolgar com a sua coragem e a sua audácia, viesse dizer-nos, numa inesperada reviravolta, que também era fraco, humano, vulnerável, desmistificando-se pela primeira vez a si próprio. O mesmo Cuto que vencera Wa'oka, o feroz e indomável che­fe dos Sioux, e conseguira conquistar a simpatia de rudes pioneiros como Ta'tanka e o velho Slim, ao ponto deste de­clarar que ele era "o diabo em pessoa".

A sequência surrealista da mor­te de Cuto — rasgo figurativo em que alguns querem ver influências de Salvador Dali — é digna de ombrear com as imagens mais oníricas e de sombria beleza que a Banda Desenhada produziu até hoje. Raras vezes um herói foi submetido a tantos "tratos de polé", quer nas mãos dos índios quer nas dos bandidos, acabando mesmo por ser vítima de uma morte cujos aspectos trágicos (incluindo a mutilação ritual, ao perder o seu escalpe) abalaram profundamente os leitores d'O Mosquito, embora tudo não tivesse passado de um sonho, habilmente dissimulado ao longo de quase uma centena de números.

Creio que muitos não se es­queceram desta "partida" de Blasco. E a verdade é que Cuto nunca mais voltou a ser o mesmo. "Nos Domínios dos Sioux" seria a última etapa de um ciclo inspirado e glorioso, em que figuram as suas melhores aventuras.

Regressado à realidade e ao século XX, o nosso herói parte para novas aventuras, prometendo que "da próxima vez não será sonho". Mas esta despedida é como uma piscadela de olho cúmplice. Se o desfecho fosse diferente, a história perderia todo o seu rico conteúdo simbólico.

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