Texto e Foto, José Serrano para o Diário do Alentejo


O festival é divulgado na televisão e em dezenas de sites de todo o mundo, aparece em revistas espanholas, francesas. A dimensão da divulgação da cidade é tanta e tão grande que nos escapa entre os dedos. O festival é um agente promocional incrível, rompendo em muito as fronteiras do País".

A cidade prepara-se para festejar a décima edição do Festival de Banda Desenhada de Beja. A partir de amanhã, sábado, dia da inauguração, e até 15, os amantes das histórias desenhadas vão poder desfrutar de um vasto e multifacetado programa.

Mais de 100 autores, representando 23 países vão estar patentes ao público, através da apresenta­Ã§Ã£o da sua obra de diversificadas formas. Para além das 21 exposições programadas, o festival con­tará também com muitas outras iniciativas como o mercado do livro, sessões de desenho ao vivo, workshops, conversas com autores, sessões de au­tógrafos e muito mais. A propósito, falámos com Paulo Monteiro, diretor do festival.


O festival deste ano conta com a presença de al­guns dos mais importantes autores de Banda Desenhada (BD) do mundo. Por que razão estão estas pessoas presentes em Beja ano após ano?

Tem sobretudo a ver com o estatuto que o festi­val tem vindo a conquistar ao longo dos últimos anos. Muitos dos autores que nos visitam cos­tumam fazer uma espécie de roteiro pelos principais festivais de BD da Europa, da América Latina, etc. Quando se encontram falam natural­mente das suas experiências, dos locais onde es­tiveram. E tem-se falado muito de Beja e do seu festival. O eco à volta dele tem sido muito posi­tivo, porque é um festival diferente dos outros.

Onde reside essa diferença?

Na própria cidade. Que é bonita, acolhedora. Onde as pessoas são muito gentis. O festival espalha-se pelo centro histórico que é agradável de visitar e pelo qual se pode passear de forma fácil. E é também, ao contrário de outros, um festival muito informal. É normal, na maioria dos festivais, pedir aos autores seis ou sete horas do seu tempo para dar autógrafos. Aqui pedi­mos uma única hora oficial. É claro que por ve­zes ficam mais tempo, mas simplesmente por­que têm vontade de o fazer. Não porque exista essa obrigatoriedade. Ou seja, eles podem sair para ir beber uma cerveja, para dois dedos de conversa, para ir ver uma exposição. Sentem-se muito livres e divertem-se muito no festival. Tudo isto acaba por ter um reflexo muito posi­tivo junto dos próprios autores. Tanto que hoje é relativamente fácil contactar qualquer autor, em qualquer parte do mundo, e saber que, à partida, ele irá aceitar o convite para participar.

O seu primeiro livro O amor infinito que te tenho e ou­tras histórias foi eleito o melhor álbum de Banda Desenhada de 2011, do Festival Internacional Amadora BD. Dois anos depois venceu o Prix Sheriff D'Or 2013, em França, um dos mais im­portantes prémios da Banda Desenhada. Esta consagração foi importante para o reconheci­mento e respeitabilidade do festival de BD de Beja?

Eu acho que não. Este festival já possui uma di­mensão tão grande que esses prémios acabam por ser só e apenas uma curiosidade. Este fes­tival tem uma oferta importante e conta com a presença de autores que são verdadeiros gigan­tes da Banda Desenhada mundial. Isso é que in­teressa. Claro que estou muito feliz com as dis­tinções que o meu livro tem merecido. Mas no meio duma coisa destas isso é irrelevante, não tem mesmo importância.

Quais os nomes mais consagrados da BD na­cional e internacional que estarão representa­dos nesta X edição do festival?
O nosso festival abarca todas as tendências e es­tilos. O universo da BD, tal como acontece com o cinema, com a literatura, tem uma série de ni­chos. E dentro de cada um deles nós temos cá autores realmente muito importantes. Para conversas, autógrafos, lançamento de livros, etc. Para alguns visitantes o mais importante será o finlandês Tommi Musturi, para outros o mexicano Tony Sandoval, que tem uma verda­deira legião de fãs, para outros ainda, o italiano Fabio Pochet que trabalha para a Walt Disney. A importância depende dos interesses de cada um. Mediaticamente os mais conhecidos serão talvez o Laerte Coutinho, um brasileiro que du­rante muitos anos publicou em jornais portu­gueses e é um autor famoso no mundo inteiro, e David Lloyd o autor da célebre máscara "V for Vendetta" que se tornou um símbolo de inúme­ros movimentos contestatarios.

Com epicentro na Casa da Cultura o festival es­tende-se por toda a cidade transformando-a numa enorme prancha de BD. Com diversos núcleos espalhados pela zona histórica que iti­nerário aconselharia a quem vem visitar o fes­tival e Beja pela primeira vez?

O ideal será escolher a Casa da Cultura como ponto de encontro. Depois fazer o percurso em direção ao castelo. Ir até ao Museu Regional, dali à Casa das Artes, mudar de rua e visitar o núcleo expositivo da rua dos Infantes, se­guir em frente até à praça da República, entrar no Conservatório Regional do Baixo Alentejo. Rumar ao castelo e visitar a Igreja de Santo Amaro, que fica mesmo ao lado. Todos estes lo­cais têm exposições. Fora do centro histórico, no edifício do politécnico de Beja, existe tam­bém uma exposição coletiva de autores de todo o mundo e que fala sobre emigração.

Que metas se propõe o festival atingir este ano?

Nas últimas edições do festival tivemos cerca de oito mil visitantes por ano. Se conseguirmos manter estes números já é muito positivo, mas a nossa expetativa e ambição é sempre a do cres­cimento, que venha cada vez mais gente. É pos­sível isso acontecer.

Considera que o festival ainda tem margem para crescer?

Sim, e muita. No trabalho a fazer com as popu­lações, com as escolas da região. E em termos de promoção no País e no estrangeiro ainda há muito caminho a percorrer. É preciso que se promova de maneira mais profissional, mais cuidadosa, mais demorada. Nos grandes fes­tivais da Europa, mal acaba uma edição, o site começa logo a apresentar o festival do ano se­guinte. Isso é muito importante. Por isso eu acredito que, daqui a meia dúzia de anos, pos­samos vir a ter 20 000 visitantes no festival.

Este ano esteve presente, como convidado, na 41ª edição do Festival Internacional de Angoulême, considerado, com os seus cerca de 300 000 visitantes, o maior festival de Banda Desenhada do mundo. A realidade que por lá encontrou é significativamente diferente da­quela que existe nos festivais nacionais? 

Muito diferente. Em frança a BD está cultu­ralmente muito enraizada. Faz parte do quoti­diano das pessoas. Do hábito de leitura de to­das as famílias. Em Portugal não é assim. Há muita gente que nunca leu um livro de BD. Em Angoulême os visitantes vão desde as crianci­nhas até aos velhinhos. Há público para todas as ofertas e ofertas para todos os gostos. Por isso é que festivais como o de Beja são tão importan­tes. Porque o mundo da BD é tão incrível, tão rico, que é importante dar a conhecê-lo.

O que falta ao festival de Beja para se trans­formar numa Angoulême?

Um jornalista escreveu um dia que Beja não é Angoulême porque Portugal não é França. Beja nunca será Angoulême. Angoulême só pode existir num país como a França em que o mercado tem milhões de leitores, dezenas e dezenas de editoras, e onde os autores têm o estatuto de estre­las de cinema. É uma realidade muito afas­tada da nossa.

O que representa de facto este festival para a cidade e para a região?

Este festival coloca Beja na vanguarda da arte contemporânea que é a Banda Desenhada. Põe as pessoas a par do que se está a fazer na BD neste momento, no mundo inteiro. Julgo que para nós, bejenses, é importante sentirmos que estamos na vanguarda de alguma coisa. E no caso específico da BD isso acontece. A nível fi­nanceiro tem um retorno que nós próprios não conseguimos calcular. No fim de semana as pessoas enchem os hotéis, as pensões, almo­Ã§am e jantam cá. O festival é divulgado na te­levisão e em dezenas de sites de todo o mundo, aparece em revistas espanholas, francesas... A dimensão da divulgação da cidade é tanta e tão grande que nos escapa entre os dedos. O festival é um agente promocional incrível, rompendo em muito as fronteiras do País.

Está satisfeito com os apoios que a autarquia tem disponibilizado ao festival nestes últimos anos?

Sim. O festival não tem um orçamento muito elevado. Mas tem uma mais-valia: as equipas da câmara de Beja. Os motoristas, carpintei­ros, eletricistas, etc. Em muitos festivais a arqui­tetura das exposições, a construção de supor­tes em madeira, a parte elétrica, a impressão de materiais de divulgação, é encomendada ao ex­terior. Nós, na câmara de Beja, temos todos estes serviços e alguns de muita qualidade. Sem estes serviços que a câmara coloca ao dispor do festival não se conseguia, com o orçamento que temos, organizar um evento desta dimensão.

O trabalho que a Bedeteca de Beja tem desen­volvido na divulgação e promoção da banda desenhada, quer através do seu acervo de álbuns e revistas bem como dos vários ateliês e exposições, tem dado os seus frutos?

Tem. Notamos muito isso, quer pelas visitas de alunos à Bedeteca, quer sobretudo pelas inúmeras vezes que somos solicitados pelas esco­las para lá fazer exposições itinerantes. E para lhes falar de Banda Desenhada, de autores. A Bedeteca conseguiu criar uma dinâmica que permitiu que se fale de BD durante o ano in­teiro. Neste momento temos uma série de exposições agendadas. E não nos ficamos só pelo Alentejo. Vamos um bocadinho ao país todo. Só existem três Bedetecas em Portugal. Lisboa, Amadora e Beja. A nossa é a mais ativa.

Como descreve o movimento da BD em Beja?

Há muita gente interessada. A visitar o festival e a comprar livros. E muitos autores a trabalhar. A seguir a Lisboa e ao Porto, Beja é a cidade do País que mais autores de BD tem. Há muita gente a desenhar. A Susa Monteiro, vencedora do Prémio Stuart de Desenho de Imprensa em 2011, o Carlos Páscoa, que está a desenhar para uma revista em Inglaterra, o João Lam, que está a trabalhar para vários jornais nacionais, o Silvestre Francisco, que colabora com revistas espanholas. São mais de vinte autores a traba­lhar em BD e muitos deles envolvidos em projetos internacionais. O próprio ateliê de Banda Desenhada da Bedeteca se encarrega de fazer crescer e lançar novas fornadas de autores dentro da cidade. O que é muito interessante. O nome de Beja, no contexto da BD, é muito falado.

Considera que Portugal ainda olha para a Banda Desenhada com preconceito? Como uma arte menor da narrativa, destinada a adultos que não querem crescer, a um público que não gosta de ler livros a sério, a uma elite erudita?

É sempre complicado generalizar. Porque se corre o risco de sermos injustos ou incorretos. Mas acredito que ainda há muita gente a pen­sar assim. Mas há muitíssima outra a pensar de forma diferente, que não tem já essa ideia. O País mudou muito nestes últimos trinta e tal anos. Houve uma evolução muito positiva. A facilidade de acesso que hoje temos à cultura, à informação, a uma série de manifestações artísticas diferentes, vieram ajudar a Banda Desenhada a aceder ao estatuto de arte.

Acredita que o Lucky Luke é realmente mais rá­pido que a sua própria sombra?

Acredito. E acho que faz falta acreditar. A vida tem muitas coisas boas para oferecer. E a banda desenhada é mais uma delas.